De certas coisas não há como se fugir.

Você se recobre de tudo que possa imaginar, reinventa teus caminhos, reaprende tuas linguagens, renova teus hábitos... Mas existe um pano de fundo que não te deixa. Imutável, estático, onipresente - expira enquanto você inspira profundamente, faz sombra nos teus passos, eco na tua voz. Às vezes você esquece que ele está lá e desliza fácil pela vida.

Mas ele sempre dá um jeito de te lembrar que existe.

Uma vez disseram para sempre me recordar de que há terra firme em todo oceano. Que em meio ao caos do mar bravio, sempre há de existir terra firme ao fundo. Porém, se esquecem que zonas abissais podem ter seis mil metros de profundidade - às vezes até mais. Qual o custo dessa terra firme ao final?






sábado, 6 de março de 2021

Irreversível


Ela sentou no chão úmido da chuva que caíra no final da tarde. Em um momento longínquo na memória, encontrou a vaga lembrança de tempos em que havia sentado no mesmo local, da mesma forma. Nesses tempos, colocava a mão na terra fofa e molhada, com alguns resquícios de grama, e deslizava lentamente sentindo as texturas avançando por entre os dedos, deixando-se invadir por esse toque e também pelos cheiros. Pouco a pouco, as sensações que começavam apenas como meros reflexos físicos se tornavam emoções mais complexas, encadeadas, robustas, que faziam com que lembrasse de que, apesar todas as atribulações, estava viva. Sentia - sempre e muito - e isso lhe era a coisa mais preciosa, era aquilo que a marcava como quem era.

Agora, porém, parecia haver um invólucro que a fechava a vácuo. 

Com esforço, agarrou a terra com força suficiente para que entrasse por debaixo das unhas, trouxe um punhado até as coxas e começou a esfregar o substrato contra a pele. Entre terra e grama, havia também pequenas pedras. Empregou mais força nas mãos quando finalmente sentiu, quase como um leve sopro de tão sutil, a lágrima descendo pelo rosto. As pedras agora passaram a ferir a pele, levemente, e apesar de ver o sangue brotando em pequenos pontos, ela não sentia dor. O choro tornou-se mais profuso e ela se engasgou um pouco, finalmente experienciando minimamente algum sentimento - mesmo que físico.


Não sabia dizer em qual parte do caminho se perdeu aquela menina que muito sentia e por isso vivia. Estava morta, talvez. Não talvez, definitivamente estava morta. Passou a caminhar sobre a vida de um jeito automático, quase como uma folha sendo levada pelas águas de um rio. Ou ainda, como se um belo dia tivesse sentado no vagão de um trem e de lá passado a observar as paisagens pela janela, sem a perspectiva de um dia tocá-las e nem conseguindo absorvê-las em totalidade - dependendo da velocidade do trem, elas viravam um borrão difuso. Os cortes nas coxas começaram a arder e ela fechou os olhos, respirando fundo e tentando sentir o cheiro da terra. Só sentiu o mais ácido e denso desespero.

Na verdade, pensou melhor, talvez tivesse noção do que a levara para aquele estado de profunda letargia. Lembrou-se de seus sentimentos ferozes e de como as pessoas ao seu redor não estavam em sua mesma frequência. E de como isso tudo a machucou a ponto de compreender que era melhor fechar-se. Ela era uma espécie de avalanche - por mais hipnotizante que pudesse ser e tivesse lá sua beleza, devastava tudo por onde passava, deixando só gelo e destruição.

O choro esvaiu o resto de suas forças e ela deitou, encolhida, sob seus próprios escombros.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Trapos


Quanto mais você olha para dentro do abismo, mais o abismo olha para dentro de você. Assim nos dizem que disse (mais ou menos) Nietzsche. Mas e quando você é o próprio abismo? Trevas pra trevas, papo reto ali, tudo certo. Quites. O caos que habita em certas esferas não tem data de início e nem tampouco prazo de validade. Ele só existe ali, soberano, inspirando enquanto se expira, a pele por debaixo da pele, a opacidade por detrás do brilho dos olhos. Ele comanda tudo que você ousa tocar, jamais te fazendo esquecer que ele estará de mãos dadas contigo para sempre. Toma tua sina.


~ Quando você passa a vida inteira tendo seu modo de existir deslegitimado pelos mais próximos, sendo tida por imatura, imprudente, volátil, irresponsável (quando lhes é conveniente nomear assim), uma hora você sucumbe. Não necessariamente desiste, mas cansa. E volta pro lugar que a vida sempre te reservou: na janela do bonde. ~



"(...) Eu te disse que estava cansado de cerzir aquela matéria gasta no fundo de mim, exausto de recobri-la às vezes de veludo, outras de cetim, purpurina ou seda - mas sabendo que no fundo permanecia aquela pobre estopa rasgada.
Perguntaste se o que me doía era a consciência. Eu te disse que o que me doía era não conseguir aceitar minha pobreza. E que eu não sabia até quando conseguiria disfarçar com outros panos aquele outro, puído e desbotado, e que eu precisava tecer todos os dias meus dias inteiros e inventar meus encontros e minhas alegrias e forjar esperas e me cercar de bruxos anjos profetas e que naquele momento eu achava que não conseguiria mais continuar tecendo inventos.(...)" Caio Fernando Abreu





segunda-feira, 1 de junho de 2020

Entraves

- Eu tô cansado, cara. Sabe, eu já me perdi tanto de mim nessas trilhas da vida, já me metamorfoseei em tantas coisas para me adaptar... Adaptar ou encaixar? Ah, não sei... é diferente, será? Enfim, para me adaptar ao que estava na minha frente que eu olho pra mim e não sei o que é meu, o que foi mexido, o que eu construí, o que construíram em mim... Viver é isso mesmo? 

- Não, não acho que seja. Acho que vida é troca. E nessa troca, às vezes a gente soma, às vezes subtrai, às vezes multiplica. Às vezes joga fora algo que não era tão legal e aprende uma nova forma e às vezes aprimora o que gente já tinha. Mas sabe, meio que num equilíbrio, saca?

-Ah, bicho! E tu vai me dizer que a gente consegue separar até onde é equilibrado e quando a gente já passou do limite do que é caro pra nós? Pffff, conta outra! A gente jura de pé junto que não tá se sabotando. Que não tá mudando pra tentar suprir a um ideal externo. Que tá fazendo tudo em plena consciência. A gente aperta o botão na mente "estou ciente e quero continuar" igualzinho faz nos sites: leu porra nenhuma dos termos, só quer passar pro próximo nível.


- Não, cara. Tu tem que ter o mínimo de senso de conhecimento pessoal, pô. Senão tu te perde...

- Mas não é isso que tô falando, pô? A questão é cadê esse conhecimento? Como é que a gente tateia o que de fato é nosso? Pode ver,  só depois que o caldo entorna que tu vai ver os limites que tu ultrapassou, a pessoa que tu tentou ser... Ah, eu tô exausto... Exausto de nem sequer saber quem sou eu mesmo no final das contas. 

- Acho que a gente é tudo isso aí, sabe. Não dá pra separar. A gente é a síntese disso tudo, de todos os processos pelos quais passamos, os bons e os ruins. Às vezes a gente se perde mais, às vezes menos... Tem coisa que custa mais da nossa reserva de energia, da nossa capacidade de se flexibilizar. Sabe, tipo uma mola!

- Mas tu sabe que até a mola tem um limite, né? Um limite que aguenta ser deformada e retornar à sua forma original. Quando passa disso, crec, deforma e não volta mais.

- Mas quem sabe aí não seja uma coisa tão ruim não voltar ao seu estado original né. É uma nova forma de existir...

- Uma nova forma que não tem mais a serventia que se propunha, idiota! Pra que serve uma mola deformada?

[silêncio]

- Sei lá, cara. Quem disse que tem que ter uma serventia? A gente não é mola. Não é objeto com uma finalidade.

- Quem fez a comparação com mola foi tu primeiro.

[mais silêncio]

- Viver não tem manual. É isto. E sabe, a gente não tem que entender nada não. A vida não faz sentido, ela faz sentir. Põe um passo atrás do outro e segue, cara, o negócio é seguir. A vida muda todo dia, não tem como achar lógica nisso.

- A vida faz sentir...

domingo, 2 de junho de 2019

Suspiro

Eles bradam:
O amor está no grito dado aos quatro cantos do mundo. Está no estardalhaço causado no meio da rua. Nas declarações marcadas em cada muro da cidade.

Eu sussuro:
O amor está no silêncio do escuro do quarto. No compasso dos corações.

Dava de ver tua costa subindo e descendo devagar com tua respiração profunda e densa, aquela que tu faz quando está completamente relaxada. A boca semi aberta num esboço de sorriso, a expressão de leveza e segurança. Tirei a mecha de cabelo que caíra por cima de teus olhos e pus por detrás da orelha com cuidado, pra não romper com teu sono.

Eles afirmam:
O amor reside nos grandes sacrifícios. Repousa nos braços da resignação.

Eu sinto:
O amor mora na leveza. Nasce na simplicidade daquilo que flui, cresce na caminhada cotidiana e descansa no refúgio da cumplicidade.

Agora dava de ver perfeitamente o caminho do teu rosto. Sabe, cabe um universo de sensações descendo nessa trilha - sobrancelhas, olhos, nariz, boca, queixo - e eu poderia morar nele o resto da vida. Cheguei mais perto de ti, tocando meu rosto no teu, bem naquele lugar que a gente se encaixa perfeitamente e onde tu tem um cheiro diferente, especial, todo teu. Respirei bem devagar e fui sendo preenchida pouco a pouco com teu aroma. 


Eu vivo:
O amor está no toque, no sorriso arrancado quando menos se espera. Está também na pele, no desejo que acende e queima, nos corpos pulsantes. O amor está onde a gente se complementa, acrescenta, soma - e não simplesmente completa, como partes soltas que se juntam. Está em nós. Vem comigo?



quinta-feira, 30 de maio de 2019

Incertezas


[Um escrito não representativo da atualidade, mas que fez barulho até ser expelido.]

Teu olho despencou de mim
Não reconheço a tua voz

A morte de um sentimento é algo complexo. Estranho, eu diria no mínimo. As coisas que se transformam, que eram e deixam de ser ou que não eram e passam a ser. Ou, pior, que nunca foram e a gente jurava que era.
Acreditava piamente, de pés juntos que era. Tanto que não dá nem para saber se era real ou se fizemos que parecesse real. Faz diferença, ao final?

Não sei mais te chamar de amor
Não ouvirão falar de nós

A morte de um amor é ainda mais complexa. Ou estranha, sei lá. Acontece de vários jeitos, mas o final é basicamente o mesmo. A nossa não foi diferente, não é mesmo? As coisas deixaram de se encaixar. Ou talvez, nunca se encaixaram e prosseguíamos ignorando calos em formação, as bolhas nos pés, as arestas que cortavam a carne de fino.

A gente se esqueceu, amor
Certeza não existe não
E a pressa que você deixou
Não vem em minha direção

Tu tinhas tanta sede, tu tinhas tanta pressa. Tanta gana por algo que nem sei e ao mesmo tempo tanta trava. E eu corri contigo, travei nas tuas retrancas, aguardei teu tempo que no final das contas não foi meu. Tua pressa? Ah, tua pressa definitivamente não veio em minha direção.

Parece que o tempo todo
A gente nem percebeu
Que aqui não dava pé não
Que tua amarra no meu peito não se deu
Te vi escapar das minhas mãos

E tava tão, mas TÃO na cara de que não daria pé que nem te vi escapar, sabe, daquele jeito melancólico, aos poucos, escorrendo entre os dedos que a gente ainda tenta aparar. Foi mesmo de vez, de piscar de olhos que tu foste. Algum dia esteve?
Realidade é um conceito abstrato demais pra mim. Ponderar o que de fato é, o que de fato foi. Cada um tem uma visão de mundo que é um recorte, uma perspectiva, apenas. E a tua sempre foi inabalável. Rígida, altiva. Talvez a minha também. 

Eu te busquei, mas
Não vi teu rosto não
Eu te busquei, mas
Não vi teu rosto
Não (*)


(*) Cecília - Anavitória

domingo, 24 de março de 2019

Enlaces







Fica mais um pouco, vai?


Pra eu poder deitar no teu peito, enquanto tu me enlaça no teu abraço apertado. Sabe, daquele jeito que meu rosto fica perto deu teu pescoço e basta um leve movimento pra eu enterrar o nariz naquele lugarzinho que te digo que tem um cheiro diferente e especial.

Ah, vai... não levanta.

Isso, assim. Deixa eu me perder no castanho dos teus olhos e no brilho do teu sorriso. Pára de virar o rosto com vergonha hahaha! Não sabe que vou te olhar assim pro resto da vida, se tu deixar? Com o coração dando uns mini infartos a cada olhar e cada toque lento.

Fica mais um pouco...

Pra pele arrepiar enquanto eu deslizo os dedos nas tuas costas e tu me afaga os cabelos. Ponto fraco, sacanagem! Isso, fica aí rindo da minha cara boba.

Fica...

Fica pra sempre.

Fica pra abrir e fechar meus dias. Nossos dias. Fica pra se perder na nossa paz e calmaria que tanto dizem de nós. Fica pra me ensinar teu jeito leve de viver a vida. Fica, principalmente, por querer ficar. 

O amor, ele pode ser leve. Mais que isso, talvez, ele deve ser leve. 

sábado, 4 de agosto de 2018

 
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