Irreversível


Ela sentou no chão úmido da chuva que caíra no final da tarde. Em um momento longínquo na memória, encontrou a vaga lembrança de tempos em que havia sentado no mesmo local, da mesma forma. Nesses tempos, colocava a mão na terra fofa e molhada, com alguns resquícios de grama, e deslizava lentamente sentindo as texturas avançando por entre os dedos, deixando-se invadir por esse toque e também pelos cheiros. Pouco a pouco, as sensações que começavam apenas como meros reflexos físicos se tornavam emoções mais complexas, encadeadas, robustas, que faziam com que lembrasse de que, apesar todas as atribulações, estava viva. Sentia - sempre e muito - e isso lhe era a coisa mais preciosa, era aquilo que a marcava como quem era.

Agora, porém, parecia haver um invólucro que a fechava a vácuo. 

Com esforço, agarrou a terra com força suficiente para que entrasse por debaixo das unhas, trouxe um punhado até as coxas e começou a esfregar o substrato contra a pele. Entre terra e grama, havia também pequenas pedras. Empregou mais força nas mãos quando finalmente sentiu, quase como um leve sopro de tão sutil, a lágrima descendo pelo rosto. As pedras agora passaram a ferir a pele, levemente, e apesar de ver o sangue brotando em pequenos pontos, ela não sentia dor. O choro tornou-se mais profuso e ela se engasgou um pouco, finalmente experienciando minimamente algum sentimento - mesmo que físico.


Não sabia dizer em qual parte do caminho se perdeu aquela menina que muito sentia e por isso vivia. Estava morta, talvez. Não talvez, definitivamente estava morta. Passou a caminhar sobre a vida de um jeito automático, quase como uma folha sendo levada pelas águas de um rio. Ou ainda, como se um belo dia tivesse sentado no vagão de um trem e de lá passado a observar as paisagens pela janela, sem a perspectiva de um dia tocá-las e nem conseguindo absorvê-las em totalidade - dependendo da velocidade do trem, elas viravam um borrão difuso. Os cortes nas coxas começaram a arder e ela fechou os olhos, respirando fundo e tentando sentir o cheiro da terra. Só sentiu o mais ácido e denso desespero.

Na verdade, pensou melhor, talvez tivesse noção do que a levara para aquele estado de profunda letargia. Lembrou-se de seus sentimentos ferozes e de como as pessoas ao seu redor não estavam em sua mesma frequência. E de como isso tudo a machucou a ponto de compreender que era melhor fechar-se. Ela era uma espécie de avalanche - por mais hipnotizante que pudesse ser e tivesse lá sua beleza, devastava tudo por onde passava, deixando só gelo e destruição.

O choro esvaiu o resto de suas forças e ela deitou, encolhida, sob seus próprios escombros.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Trapos


Quanto mais você olha para dentro do abismo, mais o abismo olha para dentro de você. Assim nos dizem que disse (mais ou menos) Nietzsche. Mas e quando você é o próprio abismo? Trevas pra trevas, papo reto ali, tudo certo. Quites. O caos que habita em certas esferas não tem data de início e nem tampouco prazo de validade. Ele só existe ali, soberano, inspirando enquanto se expira, a pele por debaixo da pele, a opacidade por detrás do brilho dos olhos. Ele comanda tudo que você ousa tocar, jamais te fazendo esquecer que ele estará de mãos dadas contigo para sempre. Toma tua sina.


~ Quando você passa a vida inteira tendo seu modo de existir deslegitimado pelos mais próximos, sendo tida por imatura, imprudente, volátil, irresponsável (quando lhes é conveniente nomear assim), uma hora você sucumbe. Não necessariamente desiste, mas cansa. E volta pro lugar que a vida sempre te reservou: na janela do bonde. ~



"(...) Eu te disse que estava cansado de cerzir aquela matéria gasta no fundo de mim, exausto de recobri-la às vezes de veludo, outras de cetim, purpurina ou seda - mas sabendo que no fundo permanecia aquela pobre estopa rasgada.
Perguntaste se o que me doía era a consciência. Eu te disse que o que me doía era não conseguir aceitar minha pobreza. E que eu não sabia até quando conseguiria disfarçar com outros panos aquele outro, puído e desbotado, e que eu precisava tecer todos os dias meus dias inteiros e inventar meus encontros e minhas alegrias e forjar esperas e me cercar de bruxos anjos profetas e que naquele momento eu achava que não conseguiria mais continuar tecendo inventos.(...)" Caio Fernando Abreu





segunda-feira, 1 de junho de 2020

 
Instintos Dissonantes | Designed by Techtrends | © 2007-2008 All rights reserved