Entrelinhas

Lembra? Nós costumávamos ir naquela parte da praia por essas horas.Você dobrava sua calça porque não gostava de sentir a barra molhada tocando na perna, me pegava pela mão e íamos para perto da água.Com as ondas tocando baixo nossos pés e o vento bagunçando nossos cabelos, eu envolvia tua cintura com meus braços e ficávamos assim, abraçadas, até o sol se pôr.A tarde se lacrava com o encontro dos nossos lábios. Depois, fazíamos aquela nossa coisa: escrever trechos de músicas na areia molhada.Como para que não durassem e nós tivéssemos que retornar pra deixar outra inscrição; e outra, e mais outra.

Logo deixamos de escrever apenas na areia molhada.Ah, você lembra de como era gostoso encontrar nossas juras secretas em cada canto inusitado da vida?Pois é... Ainda sinto um leve espasmo quando me lembro da primeira vez que li um trecho de Cássia no espelho do banheiro.Foi bom, foi bom... Você sorria e dizia sonhar em me escrever Cazuza na neve.

Parecíamos viver com uma trilha sonora! Acho que é impossível eu olhar para qualquer CD dessa estante e não associar uma música a algum momento nosso ou a alguma parte do seu corpo.Você está em cada faixa.

Ah, sabe do quê eu me lembrei?De quando eu escrevia na sua agenda com caneta verde alguma música em inglês. Você detestava as duas coisas: a caneta verde e a língua inglesa.E eu docemente lançava o desafio para que você traduzisse. Em troca, você escrevia nos meus cadernos com caneta vermelha alguma coisa em francês.Ainda guardo o dicionário...

Estou sentada agora no sofá.Aquele mesmo onde nos sentávamos depois de um dia particularmente estressante e cuidávamos uma da outra.Aquele sofá que nos custou caro, que nos fez economizar em tudo e nos propiciou os melhores jantares à luz de velas, uma vez que tínhamos que reduzir a conta de energia. Aquele mesmo sofá onde me deitei aquele dia e chorei.

Você não lembra porque não estava aqui.

Daqui eu olho a escrivaninha escura. Aquela, onde você me deixou um papel escrito Cazuza, em caneta azul, junto com a chave do apartamento.Bom, no mínimo, irônico. Cazuza. Nada de neve,só a madeira escura. E a caneta azul, dessas baratinhas mesmo,que a tinta borra tudo.

Falo com a sua secretária eletrônica, que nem ao menos tem uma música agradável de recepção.Só aquela tentativa de reproduzir algo erudito.E eu sei que você está me ouvindo, só não quer atender.Mas essa foi a primeira e última ligação. Meu repertório acabou. Fico só com um requiem, sem letra para te escrever os trechos. Pode ficar com ele todo.

terça-feira, 13 de maio de 2008

 
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